Antes de entrarmos propriamente no cerne do presente artigo, qual seja o de esclarecer direitos ao levantamento do saldo da conta de FGTS do trabalhador neste momento de calamidade, muito além do que estabelece a Medida Provisória 946 de 2020, faremos uma rápida exposição cronológica da legislação trabalhista através das medidas provisórias para o enfrentamento deste momento excepcional.
Pois bem.
A COVID-19 colocou em risco a saúde do planeta e, cada país, dentro de suas possibilidades socioeconômicas travaram medidas numa verdadeira guerra contra o avanço da pandemia e seus reflexos econômicos.
No Brasil, a primeira lei que tratou sobre as medidas de enfrentamento foi a 13.979/20, que reconheceu se tratar de emergência de saúde pública de importância internacional.
Para os trabalhadores determinou apenas que as ausências ao trabalho em razão da quarentena e isolamento tratar-se-iam de falta justificada.
O Decreto Legislativo 06/2020 reconheceu que a questão de saúde de importância internacional tratava-se de calamidade pública.
Em seguida vieram as Medidas Provisórias 927, com medidas unilaterais a serem tomadas pelo empregador para evitar dispensas e manter postos de trabalho; a 936, com possibilidade de redução de jornada e salário e suspensão de contrato de trabalho, por acordos coletivos e individuais, conforme já endossado pelo STF; a 944, com o programa emergencial de suporte a empregos através de empréstimos ao empregador diretamente sobre a folha de salários; a 945, com regras para evitar a contaminação nos trabalhos portuários e, finalmente, a 946.
A MP 946, dentre outras medidas, possibilitou o levantamento, por parte do trabalhador, a partir de 15 de junho de 2020 e até 31 de dezembro de 2020, do valor de R$ 1.045,00 de sua conta vinculada do FGTS, para o enfrentamento do estado de calamidade pública.
A Medida Provisória em referência autorizou o levantamento do valor do FGTS expressamente na forma do art. 20, XVI, da Lei 8.036/90.
Mencionado artigo traz a possibilidade de levantamento do FGTS por necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural, conforme disposto em regulamento.
Tendo em vista a existência de tratamento legal específico e anterior à existência da MP 946 e do próprio Covid-19, alguns juízes já vinham autorizando o levantamento do saldo de conta, porquanto a alínea a do dispositivo exige que, para o trabalhador sacar a quantia, deve haver estado de calamidade pública decretado pela União Federal ou estado de emergência na área em que ele mora.
E o Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo 6/20, reconheceu o estado de calamidade pública decorrente da pandemia de coronavírus (Covid-19).
Causava angústia e indefinição aos trabalhadores o fato de a CEF (Caixa Econômica Federal) não liberar o saldo, ainda que existente a previsão legal descrita, pelo que esses trabalhadores ficavam à mercê de ações judiciais e/ou no aguardo de o governo expedir um ato.
Em 07/04/2020 o Governo Federal editou a Medida Provisória 946 em que autorizou o levantamento com base no já descrito art. 20, XVI, da Lei 8.036/90, porém limitando o levantamento ao teto de R$ 1.045,00 (mil e quarenta e cinco reais) e no período a partir de 15 de junho de 2020 e até 31 de dezembro de 2020.
Ocorre que o Decreto nº 5.113/2004, que regulamenta o art. 20, inciso XVI, da Lei no 8.036, de 11 de maio de 1990 (FGTS), determina que:
Art. 4º O valor do saque será equivalente ao saldo existente na conta vinculada, na data da solicitação, limitado à quantia correspondente a R$ 6.220,00 (seis mil duzentos e vinte reais), por evento caracterizado como desastre natural, desde que o intervalo entre uma movimentação e outra não seja inferior a doze meses.
Ora, mas pode a Medida Provisória tratar de forma diversa criando condições diferentes das da própria lei e regulamento existentes antes de sua edição.
A resposta é negativa.
O artigo 62, § 1º, IV, da CRFB, referente aos requisitos materiais para edição das medidas provisórias estabelece ser vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.
Como já mencionado, o artigo 20, XVI, da Lei nº 8.036/90, abarca a hipótese da Covid-19 (pandemia) e condiciona os requisitos do saque ao regulamento. Portanto, já existe lei /regulamento que tratam do tema.
Assim, o direito para o levantamento via administrativa e perante a Caixa Econômica Federal, concedido pela MP 946/2020 no limite de um salário-mínimo e autorização de saque apenas a partir de 15 de junho de 2020 não exclui (e nem poderia) o direito de levantamento integral do FGTS pelo trabalhador a qualquer momento, porquanto justificado para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecida pelo Decreto Legislativo nº 6/2020.
Todavia, por meio da atual situação tudo indica que apenas irá lograr êxito em tal sentido por via judicial, equiparando a situação atual com a de calamidade pública por desastre natural.
A título de arremate, necessário registrar que o FGTS trata-se de direito social do trabalhador com vistas a lhe albergar em situações de vulnerabilidade, como é o caso do enfrentamento a um estado de calamidade.
E num estado de calamidade, retirar a eficácia dos direitos fundamentais, é reconhecer também a calamidade dos direitos.
E, como direito fundamental, tendo em vista o regime jurídico que lhe pertine, possui aplicação imediata, nos termos do art. 5§ 1º da Constituição Federal.
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Elisa Augusta de Souza Tavares foi Juíza do Trabalho Substituta no TRT14 de 2014 a 2019 e atualmente é Juíza do Trabalho Substituta no TRT 2 desde 01/03/2019. Professora, palestrante, autora de livros e artigos.
Fonte: augusta.jusbrasil.com.br